Durante os estados de emergência e calamidade que vigoraram em Portugal, o Governo criou um regime excecional de teletrabalho que obrigou muitas empresas a adotarem uma tendência que há alguns anos se vinha a assumir como um dos modelos de trabalho do futuro. Há quem esteja cético, mas Raquel Rebelo, CEO da Abilways Portugal, não tem dúvidas de que o teletrabalho veio para ficar e acredita que estar longe do escritório não significa estar fora da cultura da empresa. Leia a entrevista.
A pandemia de covid-19 levou muitos portugueses a trabalhar em casa, em teletrabalho. Que aspetos positivos e negativos se podem apontar dessa experiência?
Até março, o teletrabalho era visto como um dos modelos de trabalho do futuro, um futuro ainda muito distante para a maioria das empresas e colaboradores. O covid-19 veio antecipar o futuro do trabalho e mostrar que podemos ser igualmente, ou até mais, produtivos a trabalhar à distância, em nossas casas.
A pandemia pôs-nos à prova e testou a nossa capacidade de resiliência, de reinvenção, de inovação, de superação e, acima de tudo, demonstrou a nossa capacidade de enfrentar a mudança e de fazer face ao imprevisto, à incerteza, ao risco.
Muitos de nós nunca tínhamos usado o Teams, apesar de estar disponível desde 2017; nunca tínhamos feito uma reunião de equipa via Zoom, apesar de ter sido lançado em 2013; e em poucos dias tornámo-nos utilizadores assíduos destas e de outras plataformas colaborativas, que nos permitem estar em contacto e manter a proximidade com colegas de trabalho, familiares e amigos. Aprendemos rapidamente a ser todos digitais, uns com mais dificuldade do que outros, uns com mais resistência do que outros, mas todos estamos lá.
Provámos que é possível sermos eficientes e produtivos em teletrabalho.”
O Covid 19 acelerou o processo de transformação digital de todas as empresas e provou que a tecnologia é de facto um meio para nos permitir eliminar, ou pelo menos diminuir, barreiras geográficas e físicas que podem limitar, e até mesmo impedir, o desenvolvimento do nosso negócio.
Durante a quarentena provámos que o teletrabalho é possível e é uma opção para melhorar o equilíbrio entre a vida pessoal e vida profissional, diminuir o trânsito nas cidades, contribuir para a diminuição das emissões de CO2 e desta forma ajudar a travar as alterações climáticas. Provámos que o teletrabalho estimula a economia local e o comércio de bairro. Provámos que é possível sermos eficientes e produtivos em teletrabalho.
Claro que tudo isto com muita ansiedade, muitos receios, algumas noites mal dormidas, mas com um enorme sentido de união, um forte compromisso e uma grande responsabilidade individual que certamente nos tornou mais fortes e nos vai moldar para o futuro, quando voltarmos à dita ‘normalidade’.
O que fica desses tempos que alguns ainda atravessam? As empresas vão aproveitar para colocar parte dos colaboradores em teletrabalho no futuro? Ou pelo menos alguns dias nesse regime?
Fica a certeza de que cada um de nós individualmente faz a diferença. Que o contributo e a responsabilidade individual contam e que quando temos um propósito e acreditamos, conseguimos! Fica a nossa capacidade de resistir, de combater, de enfrentar desafios.
E sim, fica o teletrabalho. As empresas perceberam que não perdem produtividade, que podem reduzir espaços de trabalho e responder à necessidade de um maior worklife balance por parte dos seus colaboradores ao flexibilizarem os modelos de trabalho e permitirem que os seus colaboradores optem por este regime sempre que faça sentido.
Isso pode afetar os rendimentos dos colaboradores e a produtividade das empresas ou antes pelo contrário?
Muito pelo contrário. Como disse anteriormente, provámos que em teletrabalho podemos inclusive ser mais produtivos, ao estarmos mais focados, e reduzimos em grande escala os custos com deslocações e alimentação, podendo aumentar o rendimento disponível.
Gerir uma equipa que não está presente é muito mais complexo. Coloca a nossa capacidade de comunicação à prova.”
No entanto, são muitas as empresas que em teletrabalho e com colaboradores em lay-off se reinventaram e continuaram a produzir o mesmo, levando-as a questionarem-se se conseguiram até agora o mesmo com menos, porque é que vão voltar a ter necessidade de mais? Na minha opinião, esta situação vai colocar alguma pressão sobre algumas funções, sobretudo em funções menos business oriented.
E no pós-pandemia, quando já existir vacina ou medicamentos para controlar a doença, o teletrabalho vai ficar ou terá sido apenas algo passageiro?
O teletrabalho veio para ficar. Há muito que se falava de novas formas de trabalhar e da possibilidade de se trabalhar a qualquer hora, em qualquer lugar (ATAWAD), mas sobretudo quando falávamos dos chamados gig workers (freelancers, outsourcing, trabalho temporário ou por projeto) que pela natureza do seu trabalho têm necessidade de uma maior flexibilidade.
Eu acho que esta modalidade de trabalho à distância se vai generalizar, apesar de achar que teletrabalho não significa necessariamente trabalhar a partir de casa, mas sim trabalhar onde nos for mais conveniente e onde consigamos ser mais eficientes e mais produtivos. Sendo eu uma pessoa de relação, que privilegia o contacto social e a interação com os outros, não imagino o teletrabalho como o novo modelo de trabalho em alternativa ao trabalho no escritório das 9h às 18h, mas imagino muito mais um cenário flexível em que o teletrabalho faz sentido em alguns momentos, alguns dias. Imagino um cenário onde consigamos manter a relação social e a colaboração, com maior liberdade e flexibilidade, como já acontece em algumas empresas, mas de forma mais generalizada.
A maioria dos responsáveis de RH estão preparados para esse passo?
Acho que a grande maioria dos responsáveis de RH está preparada ou pelo menos disponível para dar este passo. Mas acho que os líderes/gestores de equipas/pessoas não estão ainda preparados para gerir equipas à distância. Ainda há um longo caminho a percorrer e nessa capacidade reside o sucesso ou insucesso deste modelo de trabalho.
A identificação e antecipação das competências do futuro, que nos vão permitir fazer face à robotização e consequente desaparecimento de muitas das funções que existem atualmente, é certamente um dos maiores desafios do futuro do trabalho.”
Há um grande trabalho a desenvolver ao nível da capacitação dos líderes. Gerir uma equipa que não está presente é muito mais complexo. Coloca a nossa capacidade de comunicação à prova. Temos de ser muito mais claros, mais objetivos e certamente muito mais assertivos na nossa comunicação. Temos de reforçar a nossa escuta ativa. Temos de aprender a confiar e transmitir muito mais confiança a quem está à distância, dando maior autonomia e diminuindo a necessidade de controlo. Temos de conseguir envolver e mobilizar as pessoas, o que nem sempre é fácil porque o não-verbal no digital é mais neutro e muito mais frio, tornando a nossa tarefa muito mais complexa. O distanciamento físico afasta e compete às lideranças mantar os colaboradores à distância próximos.
É este um dos grandes desafios do futuro do trabalho, em termos organizacionais, ou há outros?
Este é seguramente um grande desafio, mas há outros. A identificação e antecipação das competências do futuro, que nos vão permitir fazer face à robotização e consequente desaparecimento de muitas das funções que existem atualmente, é certamente um dos maiores desafios do futuro do trabalho.
Mapear os gaps de conhecimento e competências e preparar o upskilling e reskilling das equipas de trabalho é outro dos enormes desafios que o futuro do trabalho enfrenta.
Mas acima de tudo, o grande desafio do futuro do trabalho é estimular no colaborador a vontade de se reinventar e de aprender a reaprender ao longo da vida.